Diariamente, nos deparamos com dilemas que envolvem autocontrole. Resistir a uma sobremesa tentadora para manter a forma ou ceder ao desejo? Pular uma noite com amigos para adiantar o trabalho ou ir e deixar a tarefa para depois? Essas situações compartilham um elemento em comum: exigem resistir às tentações momentâneas e superar impulsos para alcançar objetivos de longo prazo, ou seja, demandam autocontrole. No entanto, o que essas decisões revelam sobre nós — tanto para nós mesmos quanto para os outros? A relação entre autocontrole e identidade tem atraído a atenção de estudiosos recentemente (Kokkoris, 2024). A grande questão é: o autocontrole suprime quem realmente somos ou nos ajuda a nos tornarmos quem aspiramos ser?
O autocontrole tem implicações profundas sobre o “eu”. Dada a importância da autoexpressão autêntica para o bem-estar geral, o estudo de Kokkoris (2024) explora como o autocontrole está relacionado à nossa identidade, considerando tanto a perspectiva do ator — quem está exercendo o autocontrole — quanto a perspectiva do observador — quem está percebendo esse comportamento externamente.
Autocontrole e autoexpressão
O autocontrole é visto tradicionalmente como um atributo positivo, ligado à força de vontade e à capacidade de aderir a metas e valores. A decisão de resistir a uma tentação pode, portanto, ser percebida como uma expressão genuína do “eu”, mostrando comprometimento com objetivos pessoais e sociais (Kokkoris, 2024).
A relação próxima entre as metas e a identidade faz com que o autocontrole seja visto como uma forma de autoexpressão. Quando alguém se abstém de um desejo imediato para atingir uma meta, isso reforça atributos positivos, como a determinação. Pesquisas mostram que a escolha de opções “virtuosas”, como alimentos saudáveis, reforça a autoimagem positiva, especialmente quando essas escolhas exigem um maior grau de resistência (Kokkoris, 2024). Ou seja, o esforço envolvido na decisão confere benefícios à identidade, não apenas no progresso da meta, mas também na percepção interna de ser uma pessoa forte e disciplinada.
Outro ponto interessante é que essa autoimagem pode influenciar o comportamento de autocontrole em situações futuras. Quando as pessoas percebem que suas decisões refletem sua identidade, elas estão mais propensas a exercer autocontrole em outros momentos. Assim, o autocontrole se torna uma via de mão dupla: ao exercer autocontrole, as pessoas expressam quem são, e quando a autoexpressão está em jogo, elas tendem a demonstrar maior autocontrole (Kokkoris, 2024).
Essa relação também aparece no contexto social. Em ambientes públicos, a necessidade de manter uma imagem favorável é ainda mais forte, o que leva as pessoas a controlarem seus impulsos de forma mais estratégica, para preservar a reputação. Isso foi demonstrado até mesmo em crianças de três a quatro anos, que já entendem a importância de demonstrar autocontrole diante dos outros (Kokkoris, 2024).
Autocontrole como supressão do “eu”
Por outro lado, há situações em que o autocontrole pode ser visto como uma repressão do verdadeiro eu. Esse ponto de vista sugere que, ao exercer autocontrole, a pessoa pode sentir que está suprimindo seus desejos e conformando-se a pressões externas, em vez de agir de acordo com sua verdadeira vontade. Estudos que analisam o autocontrole em experimentos de laboratório, como assistir a um filme triste sem demonstrar emoções, sugerem que o autocontrole pode ser percebido como uma forma de ditadura interna, levando à alienação do indivíduo em relação a seus sentimentos mais profundos (Kokkoris, 2024).
Uma linha de pesquisa propõe que o autocontrole pode induzir sentimentos de alienação ao destacar normas externas em detrimento dos desejos pessoais. Isso pode criar uma sensação de que as escolhas feitas não refletem necessariamente as preferências do indivíduo. Pesquisas sugerem, inclusive, que a escolha de opções moralmente superiores pode ser percebida como uma restrição à liberdade, levando a sentimentos de raiva ou frustração (Kokkoris, 2024).
Portanto, o autocontrole pode, em algumas circunstâncias, ser sentido como uma forma de repressão, especialmente quando o indivíduo sente que está sendo forçado a escolher a opção mais virtuosa, mas menos desejada.
Terapia de autocompaixão e autocontrole
Estudos recentes indicam que é possível encontrar um equilíbrio entre autocontrole e autoexpressão, principalmente através de abordagens terapêuticas. O estudo de Mohammadi, Shahbazi e Gholamzadeh Jofreh (2022) investigou a eficácia da terapia de autocompaixão em alunas com comportamentos autolesivos. Realizado com quatro estudantes em um centro de aconselhamento, o estudo usou um delineamento experimental e aplicou a Escala Breve de Autocontrole (BSCS) e o Inventário de Autoafirmação (ASRI). Os resultados mostraram que a terapia de autocompaixão aumentou significativamente o autocontrole e a autoexpressão das participantes.
Esse achado é crucial porque demonstra que o autocontrole não precisa ser uma forma de repressão, mas pode, na verdade, ser cultivado através de uma abordagem de cuidado consigo mesmo. A terapia de autocompaixão não só melhorou o autocontrole, como também fortaleceu a autoexpressão, permitindo que as participantes se conectassem de maneira mais profunda com suas emoções e valores, aumentando a autenticidade em suas decisões.
Reconciliando os pontos de vista conflitantes
Quando o autocontrole é visto como uma expressão autêntica e quando é percebido como uma supressão? Kokkoris (2024) propõe que as diferenças individuais na maneira como as pessoas tomam decisões podem resolver esse conflito. Aqueles que confiam mais na razão do que nos sentimentos tendem a perceber a contenção como uma forma de autoexpressão autêntica, enquanto aqueles que dependem mais de suas emoções podem ver a indulgência como uma expressão mais verdadeira de si mesmos.
Outro estudo investigou a valorização da indulgência, questionando a suposição implícita de que o autocontrole é sempre mais valorizado do que ceder à tentação. Os resultados mostraram que, para algumas pessoas, ceder às tentações pode ser visto como uma escolha válida e autêntica, o que atenua os sentimentos negativos, como culpa ou vergonha, associados à falta de autocontrole (Kokkoris, 2024). Portanto, as diferenças individuais desempenham um papel crucial na forma como o autocontrole é percebido — ora como expressão, ora como repressão.
A importância de conhecer as emoções
A chave para reconciliar essas visões conflitantes pode estar no conhecimento e no reconhecimento das nossas emoções e sentimentos. O desenvolvimento do autocontrole está diretamente relacionado à nossa capacidade de identificar e entender o que sentimos. Quando estamos cientes das nossas emoções, podemos gerenciá-las de forma mais eficaz, transformando o autocontrole em uma ferramenta de autoexpressão, em vez de uma forma de repressão.
Compreender as emoções nos ajuda a fortalecer a expressão do nosso eu interior, permitindo-nos tomar decisões mais alinhadas aos nossos valores e desejos autênticos. O estudo de Mohammadi et al. (2022) sobre a eficácia da terapia de autocompaixão em alunas com comportamentos autolesivos destacou que o autocontrole e a autoexpressão estão profundamente conectados à forma como lidamos com nossas emoções. Ao aprender a identificar e gerenciar sentimentos, essas jovens foram capazes de aumentar significativamente o autocontrole e a autoexpressão, reforçando a importância do equilíbrio emocional para o desenvolvimento de uma identidade saudável.
Autocontrole e autoexpressão: Perspectiva do observador
A forma como os outros percebem o autocontrole também é importante para entender a relação entre autocontrole e autoexpressão. De acordo com pesquisas, o autocontrole sinaliza aos outros qualidades desejáveis, como confiança, competência e assertividade (Kokkoris, 2024). No entanto, estudos mais recentes sugerem que o autocontrole pode também transmitir identidades indesejáveis. Indivíduos com maior autocontrole podem ser vistos como mais “robóticos” e desumanizados, além de menos autênticos (Kokkoris, 2024).
Essas percepções sociais variam dependendo do contexto. Em situações que envolvem socialização ou atividades criativas, pessoas com alto autocontrole podem ser menos preferidas. A percepção negativa também surge quando se percebe que o autocontrole é mantido por meio de estratégias, como evitar a exposição a tentações, em vez de confiar puramente na força de vontade (Kokkoris, 2024).
Conclusão
A decisão de exercer autocontrole ou ceder à tentação revela mais sobre nossa identidade do que pode parecer à primeira vista. O autocontrole pode ser sentido como uma expressão genuína do eu, alinhando-se com nossos objetivos e aspirações. Por outro lado, em certas situações, pode ser visto como uma forma de repressão, especialmente quando escolhas virtuosas são percebidas como imposições externas.
Diferenças individuais e contextuais desempenham um papel fundamental na forma como essas decisões são vivenciadas e percebidas. Além disso, estudos como o de Mohammadi et al. (2022) mostram que intervenções terapêuticas podem ajudar a integrar o autocontrole e a autoexpressão, promovendo um equilíbrio entre ambos e fortalecendo o bem-estar psicológico e social.
Leia mais artigos sobre cura emocional, no nosso site.
Referências: